Texto adaptado de Caio Fernando Abreu

De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca – de vinho, de lágrima e de café. O de vinho, sempre gelado, por mais que falem que se deve beber a temperatura ambiente, eu preferia assim, quase meio viscoso, durante as noites em que chegava em casa e, sem ele, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama, sem ele, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dele, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dele, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes de faculdade, entre textos de Bourdieu e sustos a cada vez que o msn piscava. Porque no meio dos restos dos gostos de vinho, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com ele, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vinho, lágrima e café, foi mesmo o gosto de vômito na minha boca. Porque no meio daquele momento entre a vinho e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente dele, guardava prudente no bolso os óculos já velhinhos de armação roxinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase todo o vinho, junto com uns restos de sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo dele. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonada no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência – e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.
 Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito – nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vômito, misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas, que costumava perdir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades, como volta-para-mim ou eu-não-consigo-viver-sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar ele dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que ele me deixou.
Mandei para a lavanderia os lençóis azul-clarinhos que ainda guardavam o cheiro dele – e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, alguns dvds, duas dúzias de copos de cristal, mas não consegui trazer outros homens para casa. Homens que não eram ele, homens que jamais poderiam ser ele, homens que não tinham nem teriam nada a ver com ele. Se ele tinha os cabelos claros, eu escolhia os morenos de fios bem escuros, se ele tinha umas pernas e bunda inigualaveis,eu escolhia os do tipo mais longilíneos, se ele tivesse a voz doce eu os selecionava pelas vozes mais roucas que gemiam coisas vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que ele dizia ou não dizia, ele nunca dizia nada além de palavras doces e macias no diminutivo, passando dos dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda por cima das linhas das minhas mãos. E dentre esses encontros eu me auto-sabotava de várias maneiras possives, cheguei a chorar durante um sexo, e sem ter como explicar o porque, juntei minhas coisas e fui embora, amaldiçoando o dia que conheci ele que me fazia comparar. Trair ele, que me abandonara, doía mais que ele ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.
Depois que ele me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do tentar pensar positivo, de muitas leituras motivacionais, das longas conversas com amigos e do mantra: "Vc sabe que isso vai passar." ouvidos a todo momentos e repetidos por mim, para mim.

E veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, mais cool, musculação, alongamento, yoga, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonita e renovada e superada e liberada e esquecida dos tempos em que ele ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana de noites em barzinhos propicios a caça, a festa alternativa propicia ao flerte com pessoas que em nada fossem parecidas com ele, e viajei, conheci novos lugares, novas nacionalidades, até um romance de verão numa ilha paradisiaca no meio do nada, o verão coloriu minha pele e meu humor.
Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de homens lindos e sedutores interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser linda, depois de todos os exercícios para esquecer ele, e também posso ser sedutora com aquele charme todo especial de mulher-quase-madura-que-já-foi-marcada-por-um-desejo-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém dele, ou tentava já não contar. Nunca ninguém soube dele em minha vida. Nunca dividi o que ele foi realmente, com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que ele me deixou. Só escrevia sobre, porque se não meus pensamentos nunca me deixariam dormir.
Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego da faculdade por volta das oito horas da noite e pela janela do quarto ainda é possível ver restos de dourados e vermelhos, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento – aquele. Como se quando ele me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parada no meio do meu quarto que só ele eu tinha trazido pra dormir, com as últimas palavras ditas ao telefone que mantinha entre a mão e o ouvido. palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem ele, vá em frente, quase da mesma forma que ele fez. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, arrevogáveis. Que ele me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-lo, e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.