Texto adaptado de Caio Fernando Abreu
De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca – de vinho, de lágrima e de café. O de vinho, sempre gelado, por mais que falem que se deve beber a temperatura ambiente, eu preferia assim, quase meio viscoso, durante as noites em que chegava em casa e, sem ele, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama, sem ele, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dele, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dele, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes de faculdade, entre textos de Bourdieu e sustos a cada vez que o msn piscava. Porque no meio dos restos dos gostos de vinho, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com ele, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.
Depois que ele me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do tentar pensar positivo, de muitas leituras motivacionais, das longas conversas com amigos e do mantra: "Vc sabe que isso vai passar." ouvidos a todo momentos e repetidos por mim, para mim.
E veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, mais cool, musculação, alongamento, yoga, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonita e renovada e superada e liberada e esquecida dos tempos em que ele ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana de noites em barzinhos propicios a caça, a festa alternativa propicia ao flerte com pessoas que em nada fossem parecidas com ele, e viajei, conheci novos lugares, novas nacionalidades, até um romance de verão numa ilha paradisiaca no meio do nada, o verão coloriu minha pele e meu humor.
Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de homens lindos e sedutores interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser linda, depois de todos os exercícios para esquecer ele, e também posso ser sedutora com aquele charme todo especial de mulher-quase-madura-que-já-foi-marcada-por-um-desejo-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém dele, ou tentava já não contar. Nunca ninguém soube dele em minha vida. Nunca dividi o que ele foi realmente, com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que ele me deixou. Só escrevia sobre, porque se não meus pensamentos nunca me deixariam dormir.
Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego da faculdade por volta das oito horas da noite e pela janela do quarto ainda é possível ver restos de dourados e vermelhos, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento – aquele. Como se quando ele me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parada no meio do meu quarto que só ele eu tinha trazido pra dormir, com as últimas palavras ditas ao telefone que mantinha entre a mão e o ouvido. palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem ele, vá em frente, quase da mesma forma que ele fez. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, arrevogáveis. Que ele me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-lo, e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.